THE WORK “THE CLIMATE, RELIEF FACTOR” (DE MARTONNE, 1913) AND ITS CONTRIBUTIONS TO CLIMATE GEOMORPHOLOGY / A OBRA “O CLIMA, FATOR DO RELEVO” (DE MARTONNE, 1913) E SUAS CONTRIBUIÇÕES PARA A GEOMORFOLOGIA CLIMÁTICA
Resumo
A evolução da ciência geomorfológica traz consigo uma dicotomia acerca da relevância dos fatores estruturais e climáticos na interpretação dos relevos terrestres. A história epistemológica da geomorfologia foi influenciada pela evolução teórica e metodológica das geociências e, a cada avanço tecnológico, um novo argumento surgia para fortalecer o papel do clima ou da litoestrutura na configuração da morfologia superficial.
As primeiras teorias de evolução geomorfológica destacavam a importância do trabalho destrutivo da ação intempérica e dos rios, rebaixando os relevos (DAVIS, 1899), assim como o papel dos fatores exógenos e dos depósitos correlativos na interpretação evolutiva do modelado (PENCK, 1953). No entanto, essas análises não contemplavam maiores detalhamentos acerca da complexidade dos processos morfodinâmicos superficiais em diferentes contextos climáticos. A obra de De Martonne (1913) “Le climat, facteur du relief” é um texto clássico acerca do papel do clima na formação dos relevos terrestres, constituindo um trabalho fundamental na geomorfologia climática (BIROT, 1973).
O texto se inicia com uma contextualização do papel dos geólogos como percussores da pesquisa geomorfológica, e o destaque dado por eles para o componente geológico na explicação dos relevos. No entanto, tendo em vista a expansão do conhecimento geomorfológico em diferentes continentes, o autor destaca a necessidade do aprofundamento em abordagens climáticas para se compreender diferentes comportamentos morfológicos.
Nessa perspectiva, ao longo do século XIX, inúmeras expedições realizadas por pesquisadores europeus em outros continentes, a exemplos de Richtofen, Passarge, Foureau e Hedin, assim como a expressiva amostragem espacial dos EUA com os seus geocientistas (Powell, Gilbert e Davis), permitiram avanços significativos na interpretação da relação do clima na configuração do relevo.
A partir de uma tentativa de sistematização de comportamentos morfodinâmicos em diferentes contextos climáticos, o trabalho passa a focar nos aspectos morfológicos em diferentes continentes e latitudes.Nessa perspectiva são elencados diversos exemplos de processos, relacionando os climas aos principais mecanismos de alteração superficial, sejam eles químicos ou físicos (termoclastia, crioclastia, descamação, etc.), além da caracterização dos sistemas de erosão em diferentes contextos climáticos a exemplos de processos glaciais, fluviais, eólicos, térmicos, etc.
O autor ressalta o fundamental papel exercido pela umidade em termos geomorfológicos, reforçando a necessidade de se analisar os regimes pluviométricos de diferentes recortes espaciais e compreender seu papel na decomposição de rochas. Além disso, a ação fluvial é elencada como agente erosivo fundamental na morfologia terrestre.
Destaca-se também que os processos de intemperismo ocorrem de forma ininterrupta, adaptando-se aos diferentes contextos climáticos, e criando alterações superficiais que passam a ser transportados pela ação dos agentes erosivos. Nos climas tropicais úmidos, a decomposição química das rochas é responsável pela formação de profundos regolitos recobertos por florestas em diferentes contextos topográficos. Já nas regiões secas, os processos físicos predominam, deixando suas marcas através de mantos de intemperismo caracterizados por material grosseiro e afloramentos rochosos.
Essa abordagem geomorfológica climática ou zonal relaciona processos morfogenéticos aos contextos climáticos, justificando morfologias predominantes condicionadas ao clima que o autor designou como “fácies topográficas”. São elencadas as fácies úmido e quente; fácies temperado úmido; fácies com estação seca; fácies desértico; fácies frio e seco; e fácies glacial, correspondendo a cada contexto morfoclimáticos global, não descartando o comportamento das áreas de transição.
O texto também apresenta questões relativas às mudanças paleoclimáticas globais (citando as glaciações) e seus possíveis reflexos preservados nas morfologias atuais. Destaca-se a necessidade de maiores aprofundamentos na paleoclimatologia no âmbito das futuras pesquisas geomorfológicas, tendo em vista a necessidade de se analisar a evolução de paisagens a partir de diferentes sistemas erosivos ao longo do tempo.
Algumas discussões acerca do papel da geologia e do clima na explicação dos relevos são apresentados na obra, indicando a questão da escala de abordagem como um fator a ser considerado. Dessa forma, indica-se que os grandes traços do relevo são determinados por eventos geológicos (dobramentos, subsidências e soerguimentos), ficando para o clima a esculturação do modelado topográfico propriamente dito.
Essa abordagem pioneira de De Martonne (1913) abriu caminho para um significativo avanço na geomorfologia climática. Com a sistematização do conhecimento geomorfológico ao longo do século XX, foram publicados importantes trabalhos descrevendo padrões de relações entre processos e formas de relevo em diferentes contextos morfoclimáticos globais, a exemplo dos trabalhos de Tricart e Cailleux (1965), Birot (1960) e Büdel (1982).
A obra “Introduction a la Géomorphologie Climatique” (TRICART; CAILLEUX, 1965) representa uma importante contribuição acerca da relação entre os processos geomórficos derivados do clima, com destaque para a vegetação e os solos. A partir de análises zonais, intrazonais e azonais de processos e formas em diferentes contextos continentais e latitudinais, foram propostos os critérios de delimitação dos domínios morfoclimáticos. Esse trabalho apresentou relevantes críticas à Teoria do Ciclo Geográfico de Davis, demonstrando a sua inadequabilidade a diferentes contextos climáticos.
Os trabalhos de Tricart e Cailleux tiveram forte impacto nos direcionamentos de pesquisas geomorfológicas de Aziz Ab’Sáber, contribuindo significativamente na delimitação e caracterização dos domínios morfoclimáticos brasileiros, assim como Birot (1960), em sua obra “Le cycle d'érosion sous les différents climats”, apresenta os mecanismos fundamentais relacionados aos ciclos de erosão, com destaque para a desagregação das rochas, o transporte detrítico nas vertentes e a dinâmica fluvial. A partir daí são apresentados os comportamentos de sistemas de erosão nos climas temperado, tropical úmido, árido e semiárido, periglacial e em regiões sujeitas a variações de estações secas e úmidas.
Dentre os mais importantes nomes da geomorfologia climática, certamente merece destaque o de Julius Büdel. Esse geomorfólogo alemão dedicou-se a analisar o comportamento dos relevos em diferentes contextos climáticos com vários trabalhos publicados entre as décadas de 1930 e 1980, tendo sistematizado sua obra no livro “Climatic Geomorphology”, traduzido para o inglês em 1982. Para Büdel (1982), os mecanismos de elaboração dos relevos variam qualitativamente e quantitativamente a depender do contexto climático e esse é o principal objeto de estudo da geomorfologia climática (ABREU, 2006).
Nas últimas décadas, a geomorfologia climática passou a ter um importante amparo de métodos geocronológicos que permitem datar depósitos sedimentares e interpretar eventos paleoclimáticos, contribuindo não só com a análise geomorfológica, mas também com uma interpretação paleoambiental variada, contribuindo com ciências como a ecologia, biogeografia, oceanografia e pedologia.
Ao longo da história da geomorfologia muito se discutiu acerca da importância da geomorfologia estrutural ou climática, porém, devemos lembrar que o objeto de estudo da geomorfologia é o relevo. Dessa forma, a perspicácia do geomorfológo deve residir na sua capacidade de analisar os componentes litoestruturais e climáticos na escala adequada, tanto do ponto de vista temporal, quanto espacial. Finalizamos destacando que “Le climat, facteur du relief” trata-se de uma obra clássica e que deve ser divulgada entre jovens pesquisadores de geomorfologia. Suas pertinentes considerações acerca da importância do clima na interpretação dos relevos, assim como uma tentativa pioneira de sistematização dessa relação em diferentes contextos climáticos, constitui etapa fundamental para a ciência geomorfológica que viria a ser desenvolvida ao longo do século XX.